quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sombra e sol


        Se desfez de todo seu peso. Não entendia em que momento pudesse estar errado. Abaixou-se, pegou a caneca, deu gole e refletiu sobre suas ações. Não sabia muito bem porquê, mas fazia isso todos os dias de manhã. Saía vasculhando seu interior como se estivesse escondendo algo de si mesmo... e no final, talvez de tanto fuçar, acabava encontrando uma lacuna sobre sua personalidade, que até ali, nem sabia defini-la totalmente.
       Na rua, os carros e todo aquele barulho da cidade faziam seu cérebro querer parar. Era muito cedo para tanto fuzuê. Limitou-se em pensar nos afazeres do dia. Tinha tanto pra fazer.
      Saiu da faculdade, queria chegar em casa e estudar, porque as provas finais estavam próximas... 
Quando chegou em casa, pegou os livros, deitou-se na cama e começou a ler todas aquelas nomenclaturas... era tão vazio... um nome sem objeto é vazio. Conclui assim esse seu pensamento sorrateiro que veio atrapalhar seus planos de estudar e tirar um dez.
       De repente nenhuma daquelas letras importavam mais. Nem o nome de sua namorada tocando no celular causava qualquer reação. Atendeu, conversou, forçou um Eu te amo, que saiu espremido de seus lábios, baixo, quase que inexistente. Correu pro espelho, olhou nos seus próprios olhos e nada.
      Pensou em brincar com seus animais, que eram responsáveis por extrair toda ternura que nele ainda existia... jogou osso, bola, fez carinho... nada. Nem o olhar meigo, doce e despretensioso do cachorro o fez sentir qualquer espécie de sentimento.
     Sua mãe chegou para o almoço. Correu para um abraço com certeza inesperado. Nada sentiu, apenas os olhos espantados da mãe que começou a enche-lo de perguntas, preocupada com sua saúde mental.
     Começou a ler e reler textos na internet que tanto gostava de remoer. Textos de amor, de ódio, de pessoas queridas, de pessoas nem tão queridas assim... nada. Não conseguia sentir nada. Era como se nunca tivesse sido ensinado a sentir. Havia esquecido o que era amar ou odiar TUDO.
    Por dias ficou sem sair de casa. Não saiu porque nada fazia mais sentido. Não conseguia encontrar um motivo para fazer as coisas que sempre sonhou, porque já não sentia nada em relação a sonhos também. As piadas ficaram sem graça porque não conseguia encontrar o contexto para causar humor. Tudo o que lia era literal, tudo o que pensava era seco, sem emoção. Não tinha mais um ideal que valesse a pena.
   Certo dia, sentado no sofá da sala, um pedaço de sol iluminou seus pés. Sentiu um pequeno sentimento de alegria, ficou com vontade de gritar que amava sua namorada, seu cachorro, sua família, sua vida... então levantou-se tomado por sentimentos bons e puros, mas quando levantou, sentiu-se vazio novamente.
    Não podia acreditar! Fazia cerca de trinta dias que não conseguia sentir nada e quando teve a oportunidade outra vez... ela escapou pelos seus dedos do pé.
    Cansado fisicamente de ficar em casa, saiu em direção ao sol. A medida que cada membro de seu corpo ia entrando em contato com o sol, todos os seus sentimentos voltavam a aflorar! Sentia-se vivo, com um propósito... aproveitou e enquanto caminhava ligou para todos que amava, disse coisas boas, palavras de amor, de perdão... com medo de que tudo sumisse de seu peito novamente. 
     Marcou um encontro no sol com sua namorada, que muito preocupada, não entendia o porquê de querer ficar no sol. Mas lá ficaram até a hora que ela deveria voltar para o trabalho. Na beira do lago, ele mais romântico do que nunca e ela abismada em poder ouvir tudo aquilo, talvez pela primeira vez em 10 anos.
    Ficou lá, pensando, pensando... e o sol foi indo embora. O medo invadiu seu coração. Não podia suportar viver daquela maneira, sempre esperando o sol forte para mostrar algum sentimento, principalmente os bons. 
    Anoiteceu. Vagarosamente foi caminhando em direção a sua casa, de cabeça baixa, pensando em como seria ruim sentir-se vazio novamente. Mas quando chegou, seu cachorro veio ao portão recebê-lo. Seu coração sentiu uma enorme alegria. Ele ainda era o mesmo. Na verdade o mesmo não, porque nunca foi capaz de expor assim seus sentimentos. Era alguém melhor. E nem queria mais saber como, apenas continuou entrando em sua casa e sentindo todas as coisas boas em ver as pessoas que amava.
    Depois do jantar, abriu um livro qualquer, foi passando os olhos, até que se deparou com a seguinte passagem:
    "Quando o tempo está assim, faz com que a gente pense em tudo o que nos incomoda...
É essa mania do sol querer iluminar e aquecer e deixar os cantos de sombra frios pela casa...
Todos os dias dessa época são assim. Então as lembranças ficam vivas e depois nossa sombra se mistura com a sombra fria que a falta de sol traz.
     O ideal é deixar sempre o calor do sol inundar nosso corpo. Sair da sombra é necessário todos os dias."


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